domingo, 31 de março de 2013

ONU retrata horror em prisões do Brasil

Relatório, que será levado a Genebra em 2014, ainda condena internações compulsórias

Vinicius Sassine 
O Globo - Sucursal de Brasília
29/03/2013

Depois de visita inédita ao Brasil, para inspeção de dez dias em cinco capitais, uma comitiva da Organização das Nações Unidas (ONU) concluiu que há excessiva privação da liberdade no país, baixíssima aplicação de medidas alternativas à prisão e grave deficiência de defensores públicos para os detentos. O Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária esteve no Brasil pela primeira vez em 22 anos de existência e, no relatório com as conclusões preliminares, registra que o país tem uma das maiores populações carcerárias do mundo.

Chamou a atenção do grupo a quantidade de detentos provisórios em presídios, delegacias, centros de detenção de imigrantes e manicômios judiciários: dentre os 550 mil detentos, 217 mil — quase 40% — aguardam uma decisão da Justiça, ou seja, não cumprem pena, mas prisões preventivas.Outros 192 mil mandados de prisão ainda precisam ser cumpridos, como consta no relatório.

O grupo da ONU também analisou possibilidades de detenções arbitrárias fora do sistema prisional

Os dois integrantes que estiveram no Brasil para as inspeções, entre os dias 18 e 28 deste mês, criticaram as iniciativas de internação compulsória de dependentes do crack. Para o chileno Roberto Garretón e o ucraniano Vladimir Tochilovsky, as internações à revelia do usuário e da família ferem leis internacionais e tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

O relatório preliminar do grupo da ONU, já encaminhado a integrantes do governo da presidente Dilma Rousseff, critica o "confinamento obrigatório de viciados em crack" em São Paulo e maioria de crianças e adolescentes entre os recolhidos das ruas do Rio de Janeiro para tratamento médico obrigatório. Integrantes do grupo dizem ter sido informados que uma verdadeira operação para "limpar" as ruas está em curso em razão da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016.

"Há informações de que agentes da polícia têm como alvo os usuários de drogas a fim de prendê-los e, muitas vezes, realizam prisões indiscriminadamente” cita o relatório. "O grupo de trabalho está seriamente preocupado com a informação de que essas medidas também são fortemente aplicadas devido a futuros grandes eventos, como a Copa e os Jogos Olímpicos que o Brasil sediará."

O grupo da ONU existe desde 1991. Nos países visitados, integrantes fazem um mapeamento de diferentes situações de detenções arbitrárias, como os casos de prisões sem determinação judicial, de jornalistas e ativistas de direitos humanos, de imigrantes e de grupos tradicionalmente discriminados.

Os membros da equipe do Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos em Genebra, na Suíça, estiveram em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza e Campo Grande. Eles se reuniram com os ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo;da Saúde, Alexandre Padi-lha; e outros integrantes do primeiro escalão do governo federal. O relatório final será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, em março de 2014.

— De acordo com as normas do Direito internacional, prisão é exceção, e não regra. A principal medida provisória no Brasil ainda é a prisão. Os juízes relutam em adotar medidas alternativas, pois não há mecanismos de controle dessas medidas — disse Tochilovsky.

A comitiva também averiguou a situação de pessoas com transtornos mentais mantidas presas em centros de detenção comuns ou em manicômios judiciários, realidade mostrada pelo GLOBO em série de reportagens publicada em fevereiro. Pelo menos 800 pessoas em cumprimento de medida de segurança, aplicada a acusados considerados inimputáveis em razão de quadros de loucura, estão em presídios comuns.

Um hospital de custódia foi visitado em Fortaleza. Em São Paulo, o grupo da ONU esteve na Unidade Experimental de Saúde. O espaço abriga seis jovens que, na adolescência, cometeram crimes com grande repercussão. Depois de completarem 21 anos de idade, para não ganharem a liberdade, os jovens foram internados compulsoriamente na Unidade Experimental. A visita foi considerada como "uma das constatações mais graves" da comitiva. "O grupo está preocupado com a falta de base legal para a detenção destes indivíduos” cita o relatório preliminar.

O documento também aponta que muitos hospitais de custódia são utilizados para "deter viciados em drogas’! É o caso do Centro de Tratamento em Dependência Química Roberto Medeiros, no Rio, um espaço para tortura, como já constatou o Subcomitê de Prevenção da Tortura da ONU.

— São muitos os doentes mentais nessa condição, e não podemos visitar todos os presídios, todos os manicômios. Identificamos os lugares mais significativos, mais ilustrativos — afirmou Roberto Garretón.

Entre as recomendações que o grupo pretende fazer ao governo brasileiro está a interrupção das internações compulsórias. A ONU também vai pedir a ampliação dos quadros de Defenso-ria Pública nos estados.

Procurado, o Ministério da Justiça só deve se manifestar hoje.

Memória
SÉRIE APONTOU DETENÇÃO ILEGAL DE LOUCOS

O GLOBO esteve em sete presídios, uma ala de tratamento psiquiátrico e um manicômio judiciário para revelar a prisão comum de pessoas com transtornos mentais absolvidas pela Justiça. Pelo menos 800 detentos foram absolvidos e permanecem em presídios, sem qualquer tipo de tratamento psiquiátrico. Os hospitais de custódia, para onde são encaminhados detentos em cumprimento de medida de segurança, reproduzem o ambiente do cárcere e são espaços para a prática de tortura, como a série de reportagens também mostrou.

Em São Luís, o único hospital psiquiátrico conveniado ao SUS para receber loucos infratores rejeita os pacientes, que acabam cumprindo medidas de segurança em presídios, nas mesmas celas onde estão detentos comuns. Em Goiânia, o maior presídio em regime fechado mantém uma ala psiquiátrica para abrigar presos com transtornos mentais, entre eles acusados já absolvidos pela Justiça. Mulheres absolvidas em função da loucura dividem celas com presas comuns em Brasília. O Hospital Penitenciário Valter Alencar, em Teresina, não separa as pessoas com transtornos mentais dos presos com outras doenças. A série mostrou ainda que o SUS chega a menos de quatro entre dez detentos nos presídios, o que significa que mais de 310 mil presos não são acompanhados diretamente por uma equipe de saúde.

Depois da publicação das reportagens, três ministérios - Justiça, Saúde e Direitos Humanos -anunciaram medidas para tentar resolver o problema, como a realização de mutirões, propostas de alteração da legislação penal e uma portaria para criação de polos de perícias psiquiátricas. O Conselho Nacional de Justiça, com base nas reportagens, oficiou as varas de execução penal nas cidades visitadas para que explicassem os flagrantes mostrados. E o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) elaborou um cronograma de visitas aos presídios

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